Caio Naressi é cineasta independente e também Mestre em cinema documentário pela Universidade Lumière Lyon 2. Atualmente pesquisa a relação da memória autobiográfica e o cinema de animação.
- Somos obcecados pela destruição? Todo dia há pelo menos dezenas de vídeos de esmagamento, compressão, queima, tritura etc. Praticamente tudo em ASMR [1]. Podemos ver todo tipo de produtos coloridos sendo destruídos. Observamos a destruição de diversas formas e repetidas vezes. Uma prensa hidráulica (@hydraluicpresschannel) que esmaga lentamente copos, brinquedos, comidas e diversas outras coisas; uma trituradora que moe tudo (@crushinglitycal) e desfigura toda a essência da coisa em si. E as guerras 24h por dia nos telejornais. Todos possuem milhões de espectadores.
- O que nos acomete perante a catástrofe? A cena de Drive my car (Ryûsuke Hamaguchi, 2021) em que Misaki Watari (Tôko Miura), a motorista, leva Yûsuke Kafuku (Hidetoshi Nishijima), o diretor de teatro, para ver a casa da sua família destruída por um evento natural e confessa seu segredo: observar a casa ser destruída sem conseguir fazer nada além de observar. A destruição nos paralisa pelo seu fascínio? Ou nos paralisa pela incapacidade que temos de controlá-la?
- Naturalmente belo. Na cena, entretanto, a casa destruída de Misaki está coberta de neve. A personagem mal consegue localizar-se em meio às modificações da própria cidade. Neve: sutileza que sedimenta grande beleza e silêncio. Nunca esquecer do silêncio das nevascas e, em seguida, do barulho que as botas fazem ao andar sob a neve. Destruição pessoal da beleza do sutil. Destruição tem sempre barulho. Em ASMR ou em excesso de explosões.
- O divino e o humano. Ainda em Drive my car. O festival de teatro onde Yûsuke vai apresentar sua versão da peça Tio Vânia, de Anton Tchekhov, se passa em Hiroshima, cidade conhecida pela destruição massiva a partir de uma decisão humana. Desta vez, a cidade se mostra a nós, espectadores, como um lugar de representação: o espaço da arte cênica. A convivência dos personagens que se dialogam em diferentes idiomas, entretanto, nos remete à clássica experiência das escrituras sagradas da Torre de Babel. Aqui, porém, está relacionada à aproximação do diálogo possível entre diferentes culturas a partir da escuta do outro, afastando o ser humano da força divina de duas maneiras: pela destruição de uma cidade e pela construção artística.
- Ponto de vista múltiplo. Também, claro: Michelangelo Antonioni’s Masterpiece ”Zabriskie Point” 1970 Full Ending.
- O roteiro de A pior pessoa do mundo (Joachim Trier, 2021). O momento em que nós podemos perceber que o antagonismo que praticamos em nossa vida não é assim tão destrutivo. Julie (Renate Reinsve) não faz as escolhas consideradas sensatas (trabalho estável, relacionamento estável, vida estável) para viver sua vida. Isso poderia torná-la destruidora de sua própria vida estável. No fim, ela só nos ensina que nossas escolhas só têm a ver com o que queremos. Afinal, como alguém pode estar tão feliz em um cartaz se, logo acima da sua cabeça, paira a afirmação “a pior pessoa do mundo”? Seguir aquilo que é dito estável pode também ser uma forma de destruição.
- O destino trágico de MacBeth. Ou a crença absoluta em uma tragédia que governa a humanidade. No caso de A tragédia de MacBeth (Joel Coen, 2021), a destruição é feita com uma bela fotografia e um destino trágico conhecido de todos. Porém, há a dúvida da potência que existe no processo de destruição. Estamos inclinados a ficar fascinados pelo que é destrutivo apenas pelo clichê – inevitável – de que a reconstrução é algo benéfico? Ou simplesmente acreditamos nesse clichê por encontrar uma forma de conviver com a destruição imanente do que somos? Nossa capacidade de amar reside no fato de saber que as coisas acabam?
- A destruição é nossa obsessão. Os carros que explodem; os seres humanos que se aniquilam; os snuff movies; os super-heróis que evitam a catástrofe causando a catástrofe. O andar lento dos carros diante de um acidente. A destruição nos sensibiliza. Para toda a destruição de Roland Emmerich, há um humanista que pode nos consolar. Independence Day (Roland Emmerich, 1996), O dia depois de amanhã (Roland Emmerich,2004), 2012 (Roland Emmerich, 2009). Como lidar com essa aniquilação? Stalker (Andrei Tarkovsky, 1979), L’humanité (Bruno Dumont, 1999), Melancolia (Lars von Trier, 2011).
- Plano Marshall literário. Talvez a destruição tenha afetado, também, a minha forma de escrever.
[1]: Em inglês, segundo a Wikipedia, ASMR significa Autonomous Sensory Meridian Response, em tradução livre, “resposta sensorial meridiana autónoma”.
Foto de Leopoldo Cavalcante.